sábado, 6 de agosto de 2016

Falácias, feminismo e padre negro.
A classificação das falácias lógicas é bastante útil na hora de analisar raciocínios incorretos. Se não estamos familiarizados com algum guia de falácias, pode não ser simples expor de maneira clara e convincente o “defeito” em algum argumento ou mesmo convencer-nos desse defeito. O conhecimento dessa classificação torna mais fácil o reconhecimento de erros de raciocínios, uma vez que, embora sejam infinitas as maneiras de se pensar errado, um número relativamente pequeno desses erros tende a se repetir com frequência. Após estudar a forma geral de cada um desses casos frequentes e o que faz com que estejam incorretos, basta identificar se o argumento que está sendo testado possui a forma de algum deles para verificar se se trata de uma falácia.
Não é difícil observar o uso de falácias na internet. O curioso é observar a frequência com que elas aparecem mesmo nos meios em que se costuma promover o ceticismo, o debate racional e a temperança. Tenho duas hipóteses não mutuamente excludentes a esse respeito: a) faz parte de um consenso tácito que a preocupação com o emprego de argumentos corretos e livres de falácias deva entrar em cena apenas em debates de caráter filosófico ou científico podendo ou devendo ser negligenciada na maioria das querelas cotidianas de caráter prático ou político; b) os vieses psicológicos relacionados as falácias são tão grandes que até mesmo aqueles comprometidos em propagar a razão, vez por outra, acabam caindo no laço.
Uma falácia muito comumente utilizada em debates na internet é o argumentum ad hominem. A versão ofensiva dessa falácia, também chamada de ataque pessoal, é bastante conhecida e fácil de identificar quando está sendo usada. Ela consiste em rejeitar uma proposição baseando-se em defeitos morais ou características consideradas negativas do seu proponente como por exemplo, numa discussão sobre intolerância religiosa, tentar refutar um argumento de um pastor evangélico, com base no fato dele ter se tornado rico por meio de suas atividades eclesiais. Como mencionei, o argumento ad hominem ofensivo não é difícil de ser identificado e não é dele que quero tratar. O argumentum ad hominem possui outra versão que nem sempre é tão facilmente percebida quanto a versão ofensiva. Trata-se da versão circunstancial que consiste em apelar para circunstancias especiais em que alguém se encontra para tentar refutar algo que ela esteja defendo ou para tentar convencê-la a aceitar algo que está sendo defendido. A seguir tentarei expor a falácia do argumentum ad hominem circunstancial por meio de exemplos verossímiles facilmente encontrados na internet.
Não faz muito tempo, estava lendo um artigo em um site (“racionalista”) criticando o feminismo radical e a forma como as autoras desse tipo de feminismo enxergam questões de sexualidade. Em um dado momento o texto cita a feminista americana Andrea Dworkin conhecida por sua forte oposição à pornografia e também por aparentemente apresentar uma certa visão negativa das relações heterossexuais. O autor então nos informa que Dworkin foi vítima de abuso durante a infância e quando adulta, dentro do próprio casamento. Após esses fatos traumáticos, ela teria então passado a elaborar e defender posições severas sobre sexualidade. O problema todo é que essas informações nos são apresentadas a guisa de refutação das posições de Dworkin. Em poucas palavras, como Dworkin foi vítima de abuso sexual, conclui-se que posições defendidas por ela a respeito de sexualidade são irracionais.
O argumento consiste no seguinte:
A é afirmada por fulano
Devido a certas circunstâncias, é conveniente para fulano afirmar A
Logo, A é falso.
O argumento é falacioso porque a conveniência de alguém em acreditar em uma proposição não tem relação lógica com a verdade ou falsidade dessa proposição. Se por exemplo, um geneticista afirma que existem componentes genéticos para a homossexualidade e ele próprio é gay, é claro que isso não deve ser encarado como uma evidência de que não existem componentes genéticos para a homossexualidade, há que se examinar os argumentos e dados experimentais apresentados pelo geneticista.
Em outra situação que me veio a memória, em um programa de debates na TV, um representante de uma famosa associação de ateus argumenta para um padre católico que historicamente o surgimento do cristianismo não conferiu um status ético mais elevado às posteriores sociedades cristãs. Particularmente, a igreja católica no Brasil não se opôs a escravidão de negros. Ele então afirma ao padre que ele“é negro e deveria saber disso”. Mais uma vez temos aqui o argumentum ad hominem do tipo circunstancial. Só que dessa vez usado de uma maneira diferente da do exemplo anterior. Nesse caso, uma circunstância especial do interlocutor (o fato dele ser negro), é oferecida como argumento em favor da proposição. O argumento baseia-se em mostrar ao adversário que é inconveniente para ele negar a proposição que está sendo defendida e não em provar que a proposição é verdadeira. Seria algo como:
Fulano afirma A
Devido a certas circunstancias, não é conveniente para ciclano negar A.
Logo, A é verdadeiro.
Como no caso anterior, a conveniência de alguém acreditar em uma proposição nada influi no status lógico da proposição. Imagine por exemplo que no campo da política alguém defenda a existência de um Estado forte com muitas agências reguladoras e detentor de muitas empresas estatais. Esse alguém então argumenta: “Você não concorda que um Estado forte é o melhor para a população? Você é funcionário público!” É claro que a discussão sobre a abrangência do Estado deve ser feita com base nas Ciências Sociais (sociologia, economia, ciências políticas, direito), na História e na Filosofia e não na situação particular em que se encontra o interlocutor. Voltemos a relação entre Igreja Católica e a Escravidão. O papel da Igreja Católica no Brasil durante a Escravidão deve ser analisado recorrendo-se a fatos históricos. Caso não haja tempo suficiente para expor detalhadamente fatos históricos ou a pessoa que argumenta não possua conhecimentos suficientes na área, pode-se citar a opinião de algum especialista. Caso nem isso seja possível, simplesmente não usar o “argumento” seria o mais sensato.
É preciso chamar atenção para o fato de que mesmo quando a conclusão que segue de um argumento falacioso é verdadeira o raciocínio permanece incorreto. Vamos retroceder um pouco no tempo para ler o “argumento” a seguir de modo a torná-lo mais verossímil.
A indústria do tabaco afirma não haver correlação entre o cigarro e qualquer tipo de câncer.
Devido a perspectiva de enorme prejuízo financeiro, caso as pessoas parem de fumar, a indústria do tabaco tem bastante interesse em fazer crer que o cigarro não causa câncer.
Logo, não podemos acreditar no que afirma a respeito a indústria do tabaco, e portanto, o cigarro causa câncer.
Reparem que embora com o passar do tempo os resultados das pesquisas tenham mostrado que a conclusão é verdadeira, tal verdade nada tem a ver com os interesses moralmente condenáveis da indústria do tabaco e o raciocínio acima segue sendo uma falácia.