Falácias, feminismo e padre
negro.
A classificação das falácias
lógicas é bastante útil na hora de analisar raciocínios
incorretos. Se não estamos familiarizados com algum guia de
falácias, pode não ser simples expor de maneira clara e convincente
o “defeito” em algum argumento ou mesmo convencer-nos desse
defeito. O conhecimento dessa classificação torna mais fácil o
reconhecimento de erros de raciocínios, uma vez que, embora sejam
infinitas as maneiras de se pensar errado, um número relativamente
pequeno desses erros tende a se repetir com frequência. Após
estudar a forma geral de cada um desses casos frequentes e o que faz
com que estejam incorretos, basta identificar se o argumento que está
sendo testado possui a forma de algum deles para verificar se se
trata de uma falácia.
Não é difícil observar o uso
de falácias na internet. O curioso é observar a frequência com que
elas aparecem mesmo nos meios em que se costuma promover o ceticismo,
o debate racional e a temperança. Tenho duas hipóteses não
mutuamente excludentes a esse respeito: a) faz parte de um consenso
tácito que a preocupação com o emprego de argumentos corretos e
livres de falácias deva entrar em cena apenas em debates de caráter
filosófico ou científico podendo ou devendo ser negligenciada na
maioria das querelas cotidianas de caráter prático ou político; b)
os vieses psicológicos relacionados as falácias são tão grandes
que até mesmo aqueles comprometidos em propagar a razão, vez por
outra, acabam caindo no laço.
Uma falácia muito comumente
utilizada em debates na internet é o argumentum ad hominem. A
versão ofensiva dessa falácia, também chamada de ataque pessoal, é
bastante conhecida e fácil de identificar quando está sendo usada.
Ela consiste em rejeitar uma proposição baseando-se em defeitos
morais ou características consideradas negativas do seu proponente
como por exemplo, numa discussão sobre intolerância religiosa,
tentar refutar um argumento de um pastor evangélico, com base no
fato dele ter se tornado rico por meio de suas atividades eclesiais.
Como mencionei, o argumento ad hominem ofensivo não é
difícil de ser identificado e não é dele que quero tratar. O
argumentum ad hominem possui
outra versão que nem sempre é tão facilmente percebida quanto a
versão ofensiva. Trata-se da versão circunstancial que consiste em
apelar para circunstancias especiais em que alguém se encontra para
tentar refutar algo que ela esteja defendo ou para tentar convencê-la
a aceitar algo que está sendo defendido. A seguir tentarei expor a
falácia do argumentum ad hominem circunstancial por meio de
exemplos verossímiles facilmente encontrados na internet.
Não faz muito tempo, estava
lendo um artigo em um site (“racionalista”) criticando o
feminismo radical e a forma como as autoras desse tipo de feminismo
enxergam questões de sexualidade. Em um dado momento o texto cita a
feminista americana Andrea Dworkin conhecida por sua forte oposição
à pornografia e também por aparentemente apresentar uma certa visão
negativa das relações heterossexuais. O autor então nos informa
que Dworkin foi vítima de abuso durante a infância e quando adulta,
dentro do próprio casamento. Após esses fatos traumáticos, ela
teria então passado a elaborar e defender posições severas sobre
sexualidade. O problema todo é que essas informações nos são
apresentadas a guisa de refutação das posições de Dworkin. Em
poucas palavras, como Dworkin foi vítima de abuso sexual, conclui-se
que posições defendidas por ela a respeito de sexualidade são
irracionais.
O argumento consiste no seguinte:
A é afirmada por fulano
Devido a certas
circunstâncias, é conveniente para fulano afirmar A
Logo,
A é falso.
O argumento é falacioso porque a
conveniência de alguém em acreditar em uma proposição não tem
relação lógica com a verdade ou falsidade dessa proposição. Se
por exemplo, um geneticista afirma que existem componentes genéticos
para a homossexualidade e ele próprio é gay, é claro que
isso não deve ser encarado como uma evidência de que não
existem componentes genéticos para a homossexualidade, há que
se examinar os argumentos e dados experimentais apresentados pelo
geneticista.
Em outra situação que me veio
a memória, em um programa de debates na TV, um representante de uma
famosa associação de ateus argumenta para um padre católico que
historicamente o surgimento do cristianismo não conferiu um status
ético mais elevado às posteriores sociedades cristãs.
Particularmente, a igreja católica no Brasil não se opôs a
escravidão de negros. Ele então afirma ao padre que ele“é negro
e deveria saber disso”. Mais uma vez temos aqui o argumentum ad
hominem do tipo circunstancial. Só que dessa vez usado de uma
maneira diferente da do exemplo anterior. Nesse caso, uma
circunstância especial do interlocutor (o fato dele ser negro), é
oferecida como argumento em favor da proposição. O argumento
baseia-se em mostrar ao adversário que é inconveniente para ele
negar a proposição que está sendo defendida e não em provar que a
proposição é verdadeira. Seria algo como:
Fulano afirma A
Devido a certas
circunstancias, não é conveniente para ciclano negar A.
Logo, A é verdadeiro.
Como no caso anterior, a
conveniência de alguém acreditar em uma proposição nada influi no
status lógico da proposição. Imagine por exemplo que no campo da
política alguém defenda a existência de um Estado forte com muitas
agências reguladoras e detentor de muitas empresas estatais. Esse
alguém então argumenta: “Você não concorda que um Estado
forte é o melhor para a população? Você é funcionário público!”
É claro que a discussão sobre a abrangência do Estado deve ser
feita com base nas Ciências Sociais (sociologia, economia, ciências
políticas, direito), na História e na Filosofia e não na situação
particular em que se encontra o interlocutor. Voltemos a relação
entre Igreja Católica e a Escravidão. O papel da Igreja Católica
no Brasil durante a Escravidão deve ser analisado recorrendo-se a
fatos históricos. Caso não haja tempo suficiente para expor
detalhadamente fatos históricos ou a pessoa que argumenta não
possua conhecimentos suficientes na área, pode-se citar a opinião
de algum especialista. Caso nem isso seja possível, simplesmente não
usar o “argumento” seria o mais sensato.
É preciso chamar atenção para
o fato de que mesmo quando a conclusão que segue de um argumento
falacioso é verdadeira o raciocínio permanece incorreto. Vamos
retroceder um pouco no tempo para ler o “argumento” a seguir de
modo a torná-lo mais verossímil.
A indústria do tabaco afirma
não haver correlação entre o cigarro e qualquer tipo de câncer.
Devido a perspectiva de enorme
prejuízo financeiro, caso as pessoas parem de fumar, a indústria do
tabaco tem bastante interesse em fazer crer que o cigarro não causa
câncer.
Logo, não podemos acreditar
no que afirma a respeito a indústria do tabaco, e portanto, o
cigarro causa câncer.
Reparem que embora com o passar
do tempo os resultados das pesquisas tenham mostrado que a conclusão
é verdadeira, tal verdade nada tem a ver com os interesses
moralmente condenáveis da indústria do tabaco e o raciocínio acima
segue sendo uma falácia.